Uma longa e carismática conversa recheada de conhecimento há uns dias atrás com um familiar de maior idade, plantou as sementas das ideias que vieram a dar origem a esta reflexão que irei fazer nas próximas entrelinhas sobre a forma como a nossa economia e a nossa sociedade estão estruturadas. O Sr. João (nome falso) contou-me como há 60 anos atrás, muitas pessoas andavam mais de 2 horas a pé por dia para se deslocarem para os seus locais de trabalho, não tinham acesso a telefones, não tinham carros, não tinham computadores, não tinham eletrodomésticos, não tinham acesso à tecnologia que hoje podemos adquirir à distância de um clique, mas que no entanto, na sua opinião, eram muito mais ricas do que as pessoas nos dias de hoje. A razão? Tinham aquilo que ninguém parece ter em pleno século XXI: tempo. Continuando o seu lamento, desabafou-me que na altura e passo a parafraseá-lo: “as pessoas passavam mais tempo com a família, iam mais vezes para os copos com os amigos, para além de que se namorava muitíssimo mais. Nos dias de hoje toda a gente está sempre ocupada a fazer sabe-se lá o quê. Parece que nem há tempo para viver”. Como é que chegamos até aqui enquanto civilização?
O problema económico consiste na premissa de que os humanos são criaturas insaciáveis que nunca estão satisfeitas com os seus níveis de consumo. Todos nós queremos mais um carro topo de gama, mais uma casa de férias, mais uma estante do IKEA, mais um blusão de pele, independentemente de estarmos financeiramente estáveis ou de nem sequer termos um grão de arroz na nossa dispensa para matar a fome. Todos queremos MAIS. Porém, temos um ligeiro grande senão: os recursos disponíveis para produzir todos esses bens e serviços são limitados.
Praticamente toda a teoria económica moderna, evangelizada e dissecada nas universidades baseia-se neste pseudoproblema que não tem solução: recursos limitados para satisfazer necessidades ilimitadas. Visto que nunca iremos conseguir satisfazê-las na totalidade, a única solução que temos ao nosso alcance para minimizar a nossa miséria e infelicidade associada ao facto de não possuirmos tudo aquilo que desejamos, é estudar qual a melhor forma de alocarmos recursos escassos da melhor forma possível para que um dia todos possamos ter um iate. E mesmo que esse hipotético dia chegue, um iate não é suficiente. A locomotiva do consumo e do crescimento não pode parar.
“Anyone who thinks that you can have infinite growth in a finite environment is either a madman or an economist.”
Kenneth Boulding
Se este paradigma de escassez que sublinha que não existe e nunca existirá riqueza suficiente para satisfazer tudo aquilo de que precisamos não faz sentido para si, não vale a pena estudar teoria moderna económica moderna. Se confessar a um economista que não precisa de 5 casas de férias, um roupeiro com pelo menos 10 mil peças de roupa, 10 carros topo de gama e uma conta bancária com mais de 10 digítos para viver uma vida tranquila e realizada, de repente o problema que os economistas procuram tão arduamente resolver, fica milagrosamente resolvido. O princípio imaculado da escassez fica comprometido e grande parte das ideias base da ciência económica são reencaminhadas para o sítio onde verdadeiramente pertencem: uma lixeira de diarreias intelectuais. Com a sua ambição de se tornar uma ciência exata como a Física e a Química, a grande maioria da disciplina de Economia acabou por desenvolver uma espécie de automutilação, com este fascínio em desenvolver a sua teoria em pressupostos apresentados como verdades empíricas tipo 1 + 1 = 2. Não é de estranhar que o resultado não nos tenha levado a bom porto.
Claro que esta ponderação que proponho é um problema para um sistema económico onde o consumo é a sua artéria de sobrevivência. Mas será assim tão complicado perceber que este modelo económico keynesiano, que procura todo o tipo de razões para estimular o consumo, não só é precisamente o que nos desincentiva a poupar e a acumular capital para sermos mais prósperos no futuro, como também é incompatível com um planeta que apresenta recursos limitados?
Ouvimos falar diariamente que a solução para erradicar a pobreza consiste em mais crescimento económico. Mais uma unidade de PIB todos os anos e estaremos uns passos mais pertos da luz ao fundo do túnel. O problema é que só observamos crescimento no número de pessoas que fazem da rua a sua habitação e no preço médio do metro quadrado de uma casa. Pelo andar da carruagem, dentro de umas décadas, um simples bife de vaca será considerado um bem de luxo, o novo caviar do séc. XXI.
Com os preços a subir a um ritmo bem superior ao ritmo de subida dos rendimentos médios auferidos, o fruto do nosso trabalho chega para cada vez menos. Os anos passam e estamos cada vez mais pobres. É para isto que 85% das pessoas gastam o seu tempo em trabalhos que detestam, sacrificando tempo que poderia ser passado a trabalhar em algo que genuinamente nos faz sentir realizados? Ou a passar tempo mais tempo com quem gostamos? É para isto que abdicamos de fazer aquilo que genuinamente queremos com as nossas vidas? É para isto que vamos lentamente destruindo o nosso planeta? Se este é o resultado do “crescimento económico”, creio que argumentar a favor do seu contrário, uma espécie de decrescimento económico, fará muito mais sentido do que alguns alguma vez imaginaríamos.
Como se diz em bom português, o maior cego é aquele que não quer ver. Está na altura de retirarmos a cabeça dos manuais e das teorias económicas e mergulhar na verdadeira realidade. A alegoria da cave de Platão descreve na perfeição a cegueira ideológica de quem continua a insistir num modelo que claramente não está a produzir os resultados esperados.
“At first, when any of them is liberated and compelled suddenly to stand up and turn his neck round and walk and look towards the light, he will suffer sharp pains; the glare will distress him, and he will be unable to see the realities of which in his former state he had seen the shadows; and then conceive someone saying to him, that what he saw before was an illusion.”
O verdadeiro problema económico
Todos temos um conjunto de necessidades que têm de ser satisfeitas. Se não tivermos comida, oxigénio, água, abrigo, etc. é garantido que iremos ter uma vida bastante conturbada, ou muito provavelmente, não teremos uma vida de todo. Para além da questão inerente à sobrevivência física, outro tipo de necessidades como a segurança, o amor, o sexo e as relações sociais (amigos e família), também são essenciais de modo a preservar a nossa saúde.
Para satisfazer uma parte destas necessidades necessitamos de bens que pela sua natureza são escassos. Ao contrário do oxigénio que existe em abundância na natureza, resultando na não rivalidade do seu consumo (não é por eu consumir mais oxigénio que alguém não terá oxigénio suficiente), a comida e a água são exemplos de bens que necessitamos que não existem em abundância (prontos para consumir) pela sua natureza. Visto que não existe uma máquina impressora para criá-los a partir do nada, é necessário capturar energia para garantir a nossa sobrevivência, combatendo assim a famosa segunda lei da termodinâmica, a lei da entropia. Temos de trabalhar portanto.
No entanto, serão muitos poucos aqueles que têm consciência do verdadeiro porquê de trabalharmos. Aparentemente existe uma dificuldade coletiva em perceber o simples facto de que o trabalho não é a riqueza, mas sim um meio para criar riqueza. “Trabalhar” só por trabalhar é um desperdício de recursos e de energia. Num mundo cada vez mais automatizado, onde se prevê que em 2055 metade dos trabalhos atuais já não serão necessários, políticos e economistas continuam a olhar para a taxa de desemprego como um barómetro económico, brindando-nos pelo caminho com a ambiciosa ideia de uma economia baseada em pleno emprego, onde todos nós teremos um “trabalho”, mesmo que ele não sirva rigorosamente para nada.
“It’s hard to imagine a surer sign that one is dealing with an irrational economic system than the fact that the prospect of eliminating drudgery is considered to be a problem.”
― David Graeber, Bullshit Jobs: A Theory
No meio desta obsessão irracional com o “trabalho” e tudo aquilo que ele representa, somos ainda bombardeados com a ideia de que será algo exógeno a nós próprios, a chave para um oceano de felicidade. Mais é a resposta para todos os nossos problemas. Porém, este panorama de escassez esbarra de frente com a nossa evolução biológica. Se recuarmos até aos nossos tempos pré-civilizacionais, as famílias dividiam o trabalho necessário à satisfação das suas necessidades limitadas, e assim que ele era completado, o dia de trabalho dava-se por encerrado. O tempo livre para desenvolver outro tipo de ocupações era visto como a verdadeira riqueza. Hoje, riqueza é o cheiro de um carro novo.
Dentro da própria teoria económica clássica, encontramos uma gritante contradição relativamente ao princípio da escassez que continua a reger o pensamento económico. A lei da utilidade marginal decrescente refere que a utilidade da unidade adicional consumida de um bem e serviço vai sendo cada vez menor à medida que os nossos níveis de consumo vão aumentando. Se estivermos uns dias sem comer e formos brindados com uma pizza, a primeira fatia irá garantir a nossa sobrevivência. A segunda e a terceira fornecerão uma série de nutrientes essenciais para o nosso corpo. As fatias seguintes servirão apenas para alimentar o bichinho da gula. A partir 7ª e da 8ª fatia começamos a sentir-nos mal dispostos e já não conseguimos comer mais. Mesmo que o preço dessa fatia seja zero, a utilidade que retiramos do seu consumo é negativa, logo damos por concluída a nossa refeição. (é assim que os buffets conseguem ter potenciais lucros apesar de cada pessoa poder comer a quantidade que desejar).
Podemos transpor o raciocínio da pizza para todos os bens e serviços que necessitamos para satisfazer as nossas necessidades. Haverá de chegar um ponto onde a economia produzir mais bens e serviços, não só não trará qualquer utilidade adicional, como também poderá contribuir negativamente para a nossa utilidade total. Se já temos o estômago cheio, não vale a pena continuar a comer!
“All living organisms grow. But in nature there is a self-limiting logic to growth: organisms grow to a point of maturity, and then maintain a state of healthy equilibrium. When growth fails to stop — when cells keep replicating just for the sake of it — it’s because of a coding error, like what happens with cancer. This kind of growth quickly becomes deadly.” — Jason Hickel
É por esta razão que o dinheiro também apresenta utilidade marginal decrescente. Ao contrário daquilo que é venerado pelo culto da ganância presente nos 4 cantos do nosso sistema económico, o dinheiro tem uma e apenas uma função: servir como meio de troca para os bens e serviços que necessitamos. Visto estes no seu todo apresentam utilidade marginal decrescente, a utilidade que retiraremos do dinheiro naturalmente não será proporcional à quantidade de dinheiro que ganhamos. Para uma família que ganhe 20 mil euros por ano, 20 mil euros adicionais ajudarão a pagar as contas, a colocar os filhos na faculdade e a florescer um fundo de emergência. Para alguém que ganha 5 milhões, podemos argumentar que 20 mil euros adicionais servirão apenas para ganhar pó na conta bancária.
“There are limits to the real wealth that any individual can consume… We cannot drive four cars at once, live simultaneously in six homes, take three tours at the same time, or devour 12 roasts of beef at one meal. — Alan Watts”
A capacidade de dizer suficiente é uma qualidade cada vez mais rara numa economia onde a obsessão por amealhar mais um euro consegue superar a ânsia por uma gota de água no deserto. Os nossos governos, bancos centrais e demais políticos continuam a vender a ideia de que precisamos de crescer mais. No entanto, não definir um objetivo final faz com que estejamos a navegar numa viagem sem destino, completamente perdidos numa corrida de roedores sem fim.
“There is a sufficiency in the world for man’s need but not for man’s greed” — Ghandi
Mas então qual é o real problema económico que deveríamos ansiar resolver? Primeiramente é essencial fazer a devida distinção entra a riqueza financeira e aquela que considero ser a nossa verdadeira riqueza, o nosso tempo. Warren Buffett tem mais de 91 anos e uma conta bancária recheada com 110 mil milhões de dólares. Se ele nos oferecesse a sua fortuna para trocar de lugar com ele, não é preciso ir à bruxa para saber que todos nós diríamos não obrigado. Já somos bilionários no que realmente interessa. Tempo. 31 anos são sensivelmente 1 bilião de segundos. Todos nós nascemos bilionários. Bilionários temporais. Atualmente a economia está estruturada para procurar maximizar a quantidade de bens e serviços que produzimos, dado um input fixo do nosso tempo. Minimizar o tempo que gastamos enquanto sociedade em trabalhos penosos, garantindo sempre a satisfação das nossas necessidades, deveria ser o real problema económico. Acumular capital para que o produto do nosso trabalho e do nosso tempo cresça, resultando assim na redução da necessidade de gastarmos tempo para produzir aquilo que necessitamos para ter uma vida tranquila. Trocar a verdadeira riqueza (tempo) pela riqueza financeira e material deverá ter sido a maior partida que a humanidade alguma vez pregou a si própria.
“We have two lives, and the second begins when we realize we only have one.” — Confucius
O nosso ativo mais precioso é completamente massacrado pela forma como a nossa sociedade está organizada. Keynes referiu em 1930 no seu famoso ensaio Economic Possibilities for our Grandchildren que devido ao progresso tecnológico, as semanas de trabalho iriam consistir de 15 horas semanais, a famosa “era dourada de lazer”. Henry Ford percebeu há um século atrás que mais horas trabalhadas não correspondiam a maior produtividade, introduzindo assim a semana de 40 horas. Se ambos ressuscitassem hoje, com certeza teriam a maior das dificuldades em perceber como é que na iminência de termos veículos autónomos, impressão 3D e inteligência artificial, temos pessoas que trabalham mais de 60 horas por semana. E não é só o workaholicolismo que assola todas as empresas nos dias de hoje que desafia a lógica deste sistema económico. Por alguma razão ainda temos dificuldade em perceber que o que conta para a economia real é a nossa produtividade e não as horas “trabalhadas”. Como demonstrado pela lei de Parkinson, ter um horário de 40 horas semanais só serve para uma coisa: ficarmos presos em reuniões desnecessárias para falar do número de casos de covid, se vai chover amanhã e de quantos golos o Cristiano Ronaldo marcou no jogo do dia anterior. O cúmulo deste manicómio será mesmo aquelas empresas onde se se concluir o devido trabalho antes das 18, tem de aguardar que o seu superior abandone o escritório para dar o dia por concluído. Ainda que todos saibamos que numa economia cada vez menos industrial e mais terciária, o número de horas não explica de todo a qualidade do nosso trabalho, continuamos a insistir num modelo de trabalho que foi desenhado para otimizar a produtividade numa fábrica de automóveis. E é assim que vamos atirando o nosso tempo para o lixo, muito provavelmente num qualquer trabalho de merda, que acrescenta um grande e gordo zero para a sociedade.
“It’s Not the Hours You Put In. It’s What You Put in the Hours” — Sam Ewing
A quarta revolução industrial traz consigo o fantasma do desemprego massivo de toda a população. A discussão do UBI vai marcando a agenda política com cada vez maior frequência. Mas o problema não reside no facto de que metade do proletariado irá fazer fila nos centros de desemprego daqui a umas décadas. Não há que ter medo dos robots que nos vêm roubar o trabalho. Eles que façam bom proveito deles. O problema é um sistema organizacional que continua a olhar para o salário como principal fonte de remuneração numa economia cada vez mais automatizada, em que o capital vai ocupar um papel cada vez maior na criação de riqueza. Confesso que não percebo como podemos apelidar um sistema de capitalista quando a grande maioria das pessoas vive apenas do rendimento do seu trabalho. Um sistema trabalhista seria um nome mais adequado e que faria mais jus à nossa realidade.
“Isn’t it obvious that the whole purpose of machines is to get rid of work? When you get rid of the work required for producing basic necessities, you have leisure — time for fun or new and creative explorations and adventures.” — Alan Watts
Poderá estar a ficar a ideia de que este texto é uma espécie de manifesto anti trabalho, onde defendo que todos devíamos ficar a contar carneirinhos em nossa casa e a beber caipirinhas na praia o resto das nossas vidas. Nada mais errado. Enquanto seres vivos, nascemos para capturar e gastar energia. Fundamentalmente, nascemos para trabalhar. O enriquecimento que o progresso tecnológico nos pode trazer (se fizermos as necessárias alterações) consiste sim em libertar mais do nosso tempo para trabalharmos e dedicarmo-nos em causas e projetos, independentemente do seu produto económico. No fundo, termos mais capacidade para travar as batalhas que queremos travar em vez das batalhas que somos obrigados a travar. (passar a ferro será com certeza a pior delas todas). Ter oportunidade de passar mais tempo para passar com quem gostamos. Ter oportunidade de lançar aquele projeto sobre algo que nos verdadeiramente apaixona, independentemente de business plans, NPVs ou outras métricas representativas da veneração com a ideia de escassez. Ter oportunidade de fazer voluntariado em África ou na comunidade local junto de pessoas que tiveram menos oportunidades do que nós. Esta é que deveria ser a verdadeira definição de crescimento e progresso económico. Com a descoberta do fogo, os nossos antepassados deixam de necessitar de despender tanto tempo para satisfazerem as suas necessidades, visto que conseguiram adquirir os bens necessários à sua sobrevivência num período mais curto de tempo. Foi esse tempo livre que nos permitiu desenvolver e alavancar todos o nosso potencial, nomeadamente o desenvolvimento da linguagem, que nos catapultou para uma outra esfera em termos de progresso civilizacional.
A irrelevância do PIB enquanto métrica económica e social
A obsessão dos agentes políticos (com destaque para a Iniciativa Liberal) com os números do PIB é mais um exemplo da ausência de reflexão existente sobre o que realmente representa e ilustra o verdadeiro progresso que todos ambicionamos. Como referiu Thomas Sowell no seu livro Basic Economics:
“Over a period of generations, the goods and services which constitute national output change so much that statistical comparisons can become practically meaningless, because they are comparing apples and oranges. At the beginning of the twentieth century, the national output of the United States did not include any airplanes, television sets, computers or nuclear power plants. At the end of that century, American national output no longer included typewriters, slide rules (once essential for engineers, before there were pocket calculators), or a host of equipment and supplies once widely used in connection with horses that formerly provided the basic transportation of many societies around the world. What then, does it mean to say that the Gross Domestic Product was X percent more in the year 2000 than in 1900, when it consisted largely of very different things at these different times? It may mean something to say that output this year is 5 percent higher or 3 percent lower than it was last year because it consists of much the same things in both years. But the longer the time span involved, the more such statistics approach meaninglessness.”
O PIB é uma métrica que mensura o valor total dos bens e serviços produzidos numa determinada economia num determinado espaço temporal. Se há 20 anos atrás uma economia produzia A, B e C, mas agora produz X, Y e Z, o seu valor económico pode ser semelhante, no entanto a utilidade desses bens e serviços será com certeza completamente diferente. De acordo dados do World Bank, um vietnamita apresenta atualmente os mesmos níveis de PIB per capita do que um americano por volta do ano de 1880. Mas enquanto um cidadão do Vietname vive hoje uma era de smartphones onde tem acesso a mais informação do que o homem mais rico dos EUA no séc. XIX, biliões (a preços da altura) não compravam eletricidade, bem essencial para termos os níveis de qualidade de vida que temos atualmente.
Mas o maior problema desta métrica prende-se com a ambiguidade relativamente a quem é que aufere a riqueza criada. Podemos ter casos em que o rendimento médio de uma população sobe, mas onde o rendimento médio das classes sociais mais baixas acaba por cair. Apesar de se ter registado uma contração forte do PIB devido à pandemia, observamos um claro reforço das desigualdades económicas agora que os níveis do PIB estão a regressar aos níveis pré-covid, com as classes sociais mais baixas numa posição económica bem mais fragilizada, completamente dizimadas pelo imposto regressivo da inflação, quando deviam ser estas os principais beneficiários do crescimento económico. E o problema das desigualdades económicas não vai ficar por aqui.
O impacto da tecnologia na nossa saúde financeira
É inegável e inevitável que à medida que a tecnologia se vai desenvolvendo, o capital continue a ganhar cada vez mais terreno (e de forma exponencial) face ao trabalho em termos do seu contributo para sua criação de riqueza. Significa isto que quem continuar a depender apenas do seu salário para fazer a sua vida irá ficar cada vez mais para trás. Se não alterarmos o funcionamento do nosso regime económico, a única solução consiste em trabalhar nestes setores disruptivos mais produtivos, para além naturalmente de deter ativos. Se um robot nos roubar o trabalho, não haverá problema se detivermos esse mesmo robot e consequentemente o fruto do seu trabalho. Deter ativos desde ações, terrenos até imobiliário continuará a ser a melhor estratégia para fazermos face à possibilidade de num hipotético dia não conseguirmos auferir rendimento através do nosso trabalho.
Mas creio que a base do problema se prende com a experiência económica em que o mundo se encontra desde 1971, ano em que Richard Nixon, presidente norte-americano, retirou a economia mundial de um padrão ouro para um sistema de moeda fiduciárias. Com uma dívida mundial superior a 350% do PIB mundial, a única forma de manter o sistema económico à tona, passa pela contínua injeção de liquidez na economia. A monetização das dívidas governamentais e a compra de outro tipo de ativos através dos famosos programas de Quantative Easing continuará a provocar a desvalorização das moedas fiduciárias, o que significa mais inflação, não só para os preços dos bens essenciais, como também para os preços dos ativos reais como a habitação. Ignorando ciclos económicos, a tendência será para que os salários reais diminuam, (o crescimento da produtividade do trabalho está estagnado e a inflação continuará a dizer presente), tornando cada vez mais difícil a compra de ativos como uma casa ou uma ação de uma empresa. Quem já tem ativos, pode colaterizá-los para receber liquidez para comprar reforçar o seu património e tirar partido desta tendência ascendente. Iremos ter portanto um aumento cada vez mais notório das desigualdades económicas na sociedade. Não estranhem se virmos na próxima década um T1 no Saldanha em Lisboa à venda por um milhão de euros. Este é o real problema que temos em mãos. A grande maioria da população não só não tem ativos, como não tem capacidade financeira para os adquirir. É aqui que o debate do UBI entra em cima da mesa. O famoso helicopter money popularizado por Milton Friedman será uma medida que com toda a certeza ganhará mais força nos próximos anos. Tratamento fiscal favorável para empresas que distribuam parte do seu capital social e potenciais lucros para os trabalhadores é uma medida que também poderá fazer sentido nesta conjuntura.
No seu mais recente livro The World Changing Worder, Ray Dalio revela como podemos encontrar semelhanças relativamente ao que se está a suceder atualmente nas sociedades ocidentais e ao que aconteceu durante vários períodos de transição para uma nova ordem social económica mundial. Depois de alcançarmos o topo enquanto potência, entramos numa fase de declínio, onde dívida e desigualdades sociais e económicas vão fazendo cada vez mais parte do vocabulário diário. Quando tudo é abundante, é fácil sermos amigos de toda a gente. Quando vivemos tempos mais apertados, o nosso instinto animalesco de sobrevivência é acionado para combater a escassez, perdendo a nossa racionalidade pelo caminho. Não é por acaso que assistimos a fenómenos extremistas um pouco por todo o mundo. É precisamente quando o sistema não providencia soluções para os nossos problemas, que procuramos bodes expiatórios e que o potencial para conflitos aumenta exponencialmente.
Mas porque é que tudo parece tão escasso? Com crescimento tecnológico que nos permite fazer cada vez mais com cada vez menos, como é não vivemos num mundo marcado por abundância com preços cada vez mais baixos?
“Show me the incentive, I’ll show you the outcome.” — Charlie Munger
Para percebermos o porquê das decisões de cada um de nós, nada melhor do que estudarmos os incentivos que estão por detrás dessas mesmas decisões. Existem razões fundamentalmente sociais por detrás da nossa paixão com a riqueza e com o dinheiro. Como Jordan Peterson refere em 12 Rules for Life, o facto de termos um histórico biológico (comum a outras espécies animais como lagostas e carriças) associado à chamada social pecking order, onde uma hierarquia social acaba por emergir naturalmente dentro do grupo, acaba por explicar muito do comportamento animalesco que a grande maioria dos humanos apresenta na busca de mais dinheiro. Visto que as disputas por parceiros sexuais (de forma direta) e recursos essenciais estritamente limitados são coisas do passado, acabamos por transferir essa batalha de poder para o campo do dinheiro, onde travamos uma batalha de ganância onde só ficaremos satisfeitos quando ultrapassarmos financeiramente o senhor Elon Musk.
Apesar de podemos argumentar que a revolução agrícola também ajuda a explicar o início da intromissão do princípio de escassez nos nossos cérebros, creio que o rastilho principal de todo este amor por pedaços de algodão se prende como uma característica agoniante das nossas economias modernas: o facto de vivermos num regime inflacionista onde a moeda é sistematicamente desvalorizada, resultando na desvalorização constante dos frutos de todo o nosso trabalho dos agentes económicos. A existência de bancos centrais e das suas políticas inflacionistas justifica-se pelo facto de que elas são necessárias para preservar a estabilidade económica e financeira. Porém, nos séculos anteriores à sua criação e consequente monopolização da oferta de moeda nas economias, não encontramos qualquer registo de crises financeiras e económicas com efeitos devastadores como as de 1929 e 2008, crises essas que se sucederam durante o reinado dos bancos centrais na economia mundial. Coincidências? Não me parece.
Para uma família de classe baixa e média, não é complicado perceber o porquê da importância e o contributo que mais uns euros ao final do mês trazem para cima da mesa. Para todos aqueles que vivem sem saber se haverá um prato de comida no final do dia, ou se terão alguma vez capacidade para comprar uma casa confortável, mais dinheiro significa proteção, sobrevivência e tranquilidade, num ambiente económico onde os preços de forma geral estão sistematicamente a subir. O imposto regressivo da inflação não dá tréguas. E para quem já tem garantidas as suas necessidades, (aka milhões na conta) como é que explicamos o paixão pelo dinheiro no seu córtex cerebral? Como é que um acionista continua obcecado com a rentabilidade da sua empresa? Ao ponto de cometer atrocidades como lançar máquinas de propaganda que plantam a ideia de que o leite materno é mau para a saúde dos bebés? Ou de explorar completamente os recursos e as pessoas de um país em busca de mais um litro de ouro negro? Ou de não sermos capazes de moralmente pagar mais do que um mísero salário mínimo de 705 euros?
Ainda que estas atitudes não tenham qualquer explicação lógica, quando os preços na economia sobrem na casa dos dois dígitos em termos médios anuais de forma sistemática, incerteza é injetada no cortex cerebral de todos nós. Enquanto que há séculos atrás, podíamos preservar o poder de compra dos frutos do nosso trabalho através de dinheiro que não podia ser criado do nada (ouro), hoje fomos roubados da possibilidade de poupar para o futuro. Será que a este ritmo de subidas, as minhas poupanças serão suficientes para comprar uma casa daqui a 10 anos? Será que aquilo que tenho será suficiente para mim e para a minha família no futuro? Num regime inflacionista é cada vez mais difícil encontrar resposta a esta pergunta. No meio de todo este potencial stress e ansiedade, a melhor política para gerir esse mesmo risco passa por garantir que dinheiro continua a entrar nos bolsos, mesmo que no fundo saibamos que provavelmente nunca iremos lhe dar qualquer tipo de uso. É assim tão estranho que numa economia onde os governantes olham para aumentar a quantidade de dinheiro na economia como solução para tudo, que os agentes económicos façam o mesmo relativamente à quantidade de dinheiro nos nossos bolsos?
Desde 1971 que a economia mundial rema contra uma corrente monetária que choca de frente com o nosso progresso. Se queremos avançar enquanto civilização, a solução passa por eliminar de vez essa corrente. A inflação é um imposto regressivo aplicado por uma instituição que não tem qualquer representação democrática, sendo atualmente liderada por uma criminosa condenada. O seu predecessor passou mais de uma década na Goldman Sachs, banco esse completamente isento de responsabilidades na crise financeira de 2008. E ainda apelidam o nosso regime de democrático.
Poderá ter ficado a ideia de que este texto se tratava de um manifesto anti capitalista. Nada mais errado. O problema não é o capitalismo. É a falta dele no mercado mais importante de todos, o mercado do dinheiro! Enquanto não eliminarmos o monopólio do estado sobre o dinheiro, este parasita continuará a sugar energia económica do nosso trabalho para alimentar TAP, bancos, guerras, e todo o tipo de politiquices. Experimentem financiar estas brincadeiras se não houvesse a possibilidade de criar dinheiro a partir do nada? Se houvesse uma real necessidade de taxar diretamente os cidadãos? O que acabamos por ter é um regime onde os cidadãos trabalham para o estado, em vez de o estado trabalhar em prol dos cidadãos.
Uma das medidas que Karl Marx e Friedrich Engels propuseram no The Communist Manifesto tem uma ressonância especial com os dias de hoje.
“Centralisation of credit in the hands of the state, by means of a national bank with State capital and an exclusive monopoly.”
Karl Marx e Friedrich Engels teriam lugares reservados para si ao lado de Christine Lagarde e Jerome Powell nas administrações dos respetivos bancos centrais. Temos uma instituição marxista que continua a impedir que façamos a devida transição deste sistema degenerativo trabalhista corrupto para um verdadeiro sistema capitalista. Não deixa de ser irónico que a ideia de mercados livres concorrenciais seja tão amplamente defendida por todos os economistas, mas que no que diz respeito ao dinheiro, defendam um monopólio estatal onde os preços (taxa de juro) são fixados por uma entidade central. Alguém está a sentir umas vibes de União Soviética por aqui?
Como é que podemos fazer a transição de um regime inflacionário para um regime deflacionário onde podemos absorver todos os ganhos que a tecnologia nos pode proporcionar? E já agora onde o nosso tempo deixa de ser roubado? Com dinheiro não passível de ser inflacionado, garantindo a sua função mais importante: ser uma reserva de valor. Com dinheiro escasso, recuperaremos a possibilidade de poupar para o futuro. Com dinheiro escasso, haverá segurança do valor do dinheiro para fazer face à incerteza do futuro. Com dinheiro escasso, será cada vez mais barato comprar um ativo como uma casa. Com dinheiro escasso, não teremos de correr risco para preservar o valor do nosso trabalho. Com dinheiro escasso, uma economia de poupança e de acumulação de capital substituirá uma economia de consumo. Com dinheiro escasso, trocamos uma vida stress e instabilidade por uma vida de tranquilidade. Com dinheiro escasso, podemos começar a planear mais para o longo-prazo em detrimento do curto-prazo. Com dinheiro escasso, poderemos finalmente ambicionar reduzir de vez as desigualdades económicas injustas. Com dinheiro escasso, poderemos eliminar a ansiedade associada ao jogo social de keep up with the jonas.
“If you have abundance in money, you have scarcity everywhere else. If you have scarcity in money, you have abundance everywhere else.” — Jeff Booth
Mas já existe um dinheiro assim? Com estas características? Impossível, devo estar a sonhar.
“I don’t believe we shall ever have a good money again before we take the thing out of the hands of government, that is, we can’t take them violently out of the hands of government, all we can do is by some sly roundabout way introduce something they can’t stop.” — Frederick Hayek
Da mesma forma que há 500 atrás, igreja e dinheiro foram separados, está na altura de estado e dinheiro assinarem o devido divórcio.
E não levemos isto da vida tão a sério. Afinal só estamos aqui para nos divertirmos.
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